" Frieda e ela conversaram, enternecidas, sobre como Shirley Temple era lindinha.Eu não podia participar dessa adoração porque odiava a Shirley. Não porque era lindinha, mas porque dançava com Bojangles, * quer era meu amigo, meu tio, meu pai e deveria dançar e rir era comigo. Em vez disso, ele desfrutava, compartilhava, concedia uma encantadora dança a uma daquelas garotinhaa brancas cujas meias nunca escorregavam para dentro dos sapatos. Por isso eu disse: " Eu gosto da Jane Withers".
Elas me deram uma olhada intrigada, concluíram que eu era incompreensível e continuaram trocando reminescências sobre a vesga da Shirley. Mais nova do que Frieda e Pecola, eu ainda não havia chegado ao ponto decisivo na desenvolvimento da minha psique que me permitira gostar dela. O que eu sentia naquela época era ódio puro. Mas antes eu tinha um sentimento mais estranho e assustador do que o ódio por todas as Shirley Temples do mundo. Começou no Natal, com as bonecas ganhas de presente. O presente grande, especial, dado com muito carinho, era sempre uma Baby Boll grande, de olhos azuis, Pela tagarelice dos adultos, eu sabia que a boneca reprensetava o que eles pensavam que fosse o meu maior desejo. Fique pasmada com a coisa e com a aparência que tinha. Eu tinha que fazer o que com aquilo? Fingir que era mãe? Eu não tinha interesse por bebês nem pelo conceito de maternidade. Estava interessada somente em seres homanos da minha idade e tamanho, e não conseguia sentir entusiasmo algum ante a perspectiva de ser mãe. Maternidade era velhice e outras possiblidades remotas. Mas aprendi depressa o que esperavam que eu fizesse com a boneca: embalá-la, inventar historinhas em torno dela, até dormir com ela. Os livros de figuras estavam cheios de garotinhas dormindo com suas bonecas. Geralmente bonecas de pano Ragged Ann, mas essas estavam fora de questão. Eu ficava enojada e secretamente assustada com aqueles olhos redondos imbecis, a cara de panqueca e o cabelo de minhocas alaranjadas.
As outras bonecas, que supostamente me dariam grande prazer, tiveram êxito em fazer o oposto. Quando a levei para a cama seus membros duros resistiam ao meu corpo - as pontas dos dedos afilados naquelas mãos com covinhas arranhavam. Se eu me virasse dormindo, a cabeça fria como um osso batia na minha. Era uma companheira de sono muito desconfortável e patentemente agressiva. Segurá-la não era mais gratificante. A gaze ou renda engomada do vestido de algodão tornava irritante qualquer abraço. Eu tinha uma única vontade: desmembrá-la. Ver do que era feita, descobrir o que havia de tão estimável, de desejável, de beleza que me havia escapado, e aparentemente só a mim. Adultos, meninas mais velhas, lojas, revistas, jornais, vitrines - o mundo todo concordava que a boneca de olhos azuis e cabelo amarelo e pele rosada era o que toda menina mais almejava. "Olha", diziam, "ela é linda, e se você for 'boazinha' pode ganhar uma." Eu passava o dedo no rosto, pensando nas sobrancelhas desenhadas com um único traço; cutucava os dentes perolados, enfiados como duas teclas de piano entre lábios vermelhos em forma arco. Contornava o nariz arribitado, enfiava o dedo nos olhos de vidro azul, torcia o cabelo loiro.
Não conseguia gostar dela. Mas podia examiná-la para ver o que era que todo mundo dizia que era adorável. Se eu quebrasse os dedos minúsculos, dobrasse os pés chatos, soltasse o cabelo, girasse a cabeça, a coisa fazia um som - um som que, diziam, era um meigo e choroso "Mamãe", mas que, pra mim, soava como o balido de um cordeiro agonizando ou, mais precisamente, a porta da nossa geladeira abrindo com suas dobradiças enferujadas em julho. Se eu lhe removesse o olho frio e estúpido, continuava balindo "Aaaahhhh" se arrancasse a cabeça, sacudisse a serragem para fora, rachasse as costas contra a grade de metal da cama, ela continuava balindo. As costas de gaze rachavam e eu via o disco com seis furos, o segredo do som. Uma mera coisa redonda de metal.
. . .
Eu destruía bonecas brancas.
Mas o desmembramento das bonecas não era o verdadeiro horror. O que realmente aterrorizava era a transferência dos mesmo impulsos para garotinhas brancas. A indiferença com que eu poderia trucidá-las era abalada apenas pela minha vontade de fazer isso. Para descobrir o que me escapava: o segredo da magia que elas exerciam sobre os outros. O que fazia as pessoas olharem para elas e dizer “Aaaaaaahhhhhh”, mas não para mim ? O olhar de mulheres negras ao se aproximar delas na rua e a meiguice possessiva com que tocavam quando lidavam com elas.
Se eu as beliscasse, os seus olhos - ao contrários do brilho desvairado dos olhos da Baby Doll - contraíam-se de dor, e o grito delas não era o som da porta da geladeira, mas um fascinante grito de dor. Quando entendi como essa violência desenteressada era repugnate, que era repugnante porquer era desenteressada, a minha vergonha debateu-se em busca de refúgio. O melhor esconderijo foi o amor. Assim, conversão do sadismo original em ódio fabricado, em um amor fraudolento. Um pequeno passo até Shirley Temple. Muito mais tarde apredi a adorá-la, exatamente como aprendi a me deliciar com a limpeza, sabendo, mesmo enquanto aprendia, que mudar foi adaptar sem melhorar."
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"* Bill "Bojangles" Robinson (1878-1949), dançarino de sapateado. (N.T.)"
Trecho de "O Olho mais Azul" 1º capítulo : Outono
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Quando ví as bonecas Blythes pela primeira vez no atelier de uma amiga minha tive uma sensação semelhante a de Claudia MacTeer [ que narra o livro "O Olho mais Azul", alter-ego da autora da Toni Morrison ] . . . BONECA FEIA ZOIUDA, 1 VERSÃO LUXO DOS MINI CRAQUES DA COCA COLA, sabe?
Quando ela me falou o preço então . . . AH RÁ,QUANTO TÉO? 800,00 NUMA BONECA? Não demostrei muito minha indignação, foi só essa frase . . . aí ela me explicou todo o conceito, histórico da tal boneca cabeçuda [ aqui tem! ] e eu resolvi não estender o assunto. . . até 1 dado dia perambulando pelos flyrcks da vida achei 1 galeria com a MAGRELA, CABEÇUDA E ZOIUDA versão BLACK*
A Galeria Flirck BLACK BLYTHE IS BEAUTIFUL é dedicada somente as bonequinhas pintadas de marrom . . . já que pode se customizar cabelo e olhos . . por que não a cor das bonecas?
Racismo às avessas ou não . . desde então me apaixonei pela blythes . . . e quero entrar para o hall de colecionadoras, quero várias . . . cabelo crespo, cabelo liso, black power! aloka* rsrsrs*
Por que me fala . . . as pretinhas não são 1 fofura?
site oficial das blythes
Site de bonequeiras do Brasil
Up* Sobre o livro O Olho Mais Azul . . .
Cholly e Pauline Breedlove têm dois filhos - Sammy e Pecola. Seria uma típica família americana não fossem os Breedlove muito pobres e negros. A situação de marginalidade é ainda mais grave para a menina Pecola, que encontra rejeição em todos os ambientes que freqüenta. Na escola, é ridicularizada até pelas outras crianças negras, pois é quem tem a pele mais escura. Nos Estados Unidos da década de 40, época em que se passa a história, o padrão de beleza é exatamente o oposto daquele que a menina ostenta. Garotas negras e pobres, como ela, costumavam ganhar de presente bonecas brancas de olhos azuis e tomar leite em canecas estampadas com o rosto da atriz-mirim Shirley Temple. Todas as noites, a pequena Pecola reza para ter olhos azuis - num delirante e inconsciente desejo de redenção e ascensão social. - Sinopse Livraria Cultura
Terminei de ler a poucos dias . . . é um livro maravilhoso, ganhou de Nobel de literatura e os caramba . . . não foi à toa!
Tenho uma gratidão absurda por esta obra de Toni Morrison, pretendo reler ainda essa semana. Não vou falar sobre a história do livro e as consequências da leitura . . . talvez depois de reler, e também por que super indico que leiam e tenham suas interpretações.

*Título: O Olho mais azul*
*Autora: *Toni Morrison
*Editora:Companhia das Letras
*ISBN:8535903151
*Ano: 2003